O poder Executivo promulgou, em 17 de maio de 2024, a Medida Provisória (MP) nº 1221/24. O objetivo é simplificar os procedimentos de licitações públicas e a celebração de contratos administrativos, buscando acelerar esses processos e proporcionar segurança jurídica aos administradores durante crises públicas. Essa Medida Provisória faz parte de um conjunto de medidas destinadas a auxiliar na reconstrução do Rio Grande do Sul após a recente tragédia.
De forma geral, a Medida Provisória estabeleceu requisitos menos rigorosos que os previstos na Lei de Licitações e Contratos no que tange ao processo de compra e contratações públicas. Os contratos realizados sob as diretrizes desta MP terão um prazo inicial de um ano, com a possibilidade de serem prorrogados por período semelhante.
Neste artigo, analisa-se mais especificadamente a previsão do seu artigo 16, qual traz a possibilidade de alteração dos contratos já firmados como uma forma de atender à situação de calamidade pública enfrentada pelo estado do Rio Grande do Sul, inclusive permitindo que essas alterações ultrapassassem os limites habituais (previstos na Lei de Licitações e Contratos Administrativos nacional). É da íntegra da referida previsão:
Art. 16. Os contratos em execução na data de publicação do ato autorizativo específico de que trata o inciso II do § 1º do art. 1º desta Medida Provisória poderão ser alterados para enfrentamento das situações de calamidade de que trata o art. 1º:
I – mediante justificativa;
II – desde que haja a concordância do contratado;
III – em percentual superior aos limites previstos no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666, de 1993, e no art. 125 da Lei nº 14.133, de 2021[1], limitado o acréscimo a cem por cento do valor inicialmente pactuado; e
IV – desde que não transfigure o objeto da contratação.
Por sua vez, o Parecer Jurídico Referencial nº 20.680/24, emitido pela Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul, e que detalhou as nuances interpretativas da referida Medida Provisória, trouxe o seguinte quanto à previsão acima:
PARECER JURÍDICO REFERENCIAL. MEDIDA PROVISÓRIA No 1.221/2024. REGIME JURÍDICO EXCEPCIONAL PARA A AQUISIÇÃO DE BENS E A CONTRATAÇÃO DE OBRAS E DE SERVIÇOS, INCLUSIVE DE ENGENHARIA. ENFRENTAMENTO DE IMPACTOS DECORRENTES DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. […] 8. A prorrogação adicional dos contratos por um ano aplica-se aos contratos administrativos cuja vigência se encerre no período de calamidade, independentemente da relação direta de seu objeto com as necessidades decorrentes do estado de calamidade pública, permitindo: (i) que a Administração Pública concentre seus esforços nas contratações voltadas ao enfrentamento das situações urgentes decorrentes da calamidade pública; e (ii) caso tenha relação com as necessidades decorrentes da calamidade, a manutenção de contratos administrativos celebrados em contextos de normalidade, presumindo-se que em sua formação houve maior possibilidade de cumprimento dos requisitos regulares, inclusive com a realização de licitação. [….] Embora o referido Decreto Legislativo tenha sido publicado em 07 de maio de 2024, não há restrição para que os contratos com fundamento na Medida Provisória no 1.221/2024 alcancem fatos que lhe sejam anteriores, desde que inseridos no contexto de calamidade pública de que trata o citado art. 19 da norma. Este dispositivo, ao fazer referência à aplicação imediata do texto normativo ao evento de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo no 36/2024, aliado ao contexto histórico e à finalidade da criação da norma especial, não deixa dúvidas a respeito da possibilidade de que os contratos administrativos firmados sob a égide do regime excepcional abarquem o atendimento de toda e qualquer necessidade urgente verificada desde o início dos eventos climáticos. […] Ainda, a Medida Provisória permite a alteração dos contratos vigentes, durante o período da calamidade pública e desde que a justificativa esteja relacionada ao enfrentamento de suas consequências, até o limite de 100% (cem por cento) de seu valor inicial atualizado, sendo, nestes casos, necessária a concordância do contratado, além de vedada a transfiguração do objeto contratual […] Desse modo, os contratos firmados anteriormente à declaração da calamidade poderão sofrer alterações quantitativas e qualitativas a fim de adequar o objeto contratual (já em execução) ao cenário alterado em consequência dos eventos que deram origem ao estado de calamidade pública, desde que devidamente justificadas e mediante anuência do contratado, em percentual superior ao ordinariamente previsto pela Lei Federal no 14.133/2021.
Como se verifica, em razão do estado de calamidade pública enfrentada pelo estado do Rio Grande do Sul, alargou-se as possibilidades de alterações contratuais.
Todavia, afora a necessidade de correlação do contrato com o enfrentamento da calamidade posta, e da necessidade de justificativa e concordância do contratado, a MP prevê como uma limitação adicional à alteração contratual excepcional, a de que não haja, nas linhas do seu inciso IV, a transfiguração do objeto.
A transfiguração de um contrato administrativo ocorre quando as modificações realizadas nas alterações contratuais transformam o objeto inicial do contrato. Em outras palavras, trata-se de alterar o contrato a tal ponto que seu objeto original se converte em algo distinto, ou seja, em um novo objeto.
Nos contratos de engenharia, eventual configuração da transfiguração do objeto pode ocorrer quando, em decorrência da situação de calamidade pública e dos serviços que precisarão ser prestados, ocorre uma severa mudança técnica na execução do contrato.
Para essa análise, utiliza-se como referência o acórdão originado do Relatório de Auditoria nº 15762022011.481/2015-3[2], julgado pelo TCU. Na ocasião, o TCU analisava questões relativas a obras de canalização e drenagem de um rio, especificamente as alterações efetuadas no contrato durante sua execução. A Administração Contratante decidiu modificar o contrato, em vez de promover uma nova licitação ou contratação, com os seguintes argumentos resumidos:
a) impossível prever e mensurar as alterações necessárias que se mostraram necessárias na fase preparatória da licitação;
b) “o surgimento de novos elementos (…) somente ficaram evidenciados com o efetivo início e transcorrer dos trabalhos, submetidos à permanente avaliação técnica e operacional, demandando alterações nos serviços anteriormente orçados”;
c) para a “aprovação da alteração da metodologia, foram levados em consideração, dentre outros aspectos, a vantajosidade da modificação; a maior segurança dos operários; a otimização do cronograma; a redução da quantidade de trabalhadores dentro da calha do rio; a manutenção das condições de qualificação exigidas inicialmente no edital de licitação”.
d) a avaliação submetida ao Consórcio Ecobrape (empresa supervisora da obra) e aprovada dos gestores do Inea concluiu-se que “o valor de uma nova licitação para a execução das obras que seriam objeto da proposta de rerratificação apresentados pelo Consórcio seria mais oneroso para esta instituição [Inea] do que a viabilização da continuidade do empreendimento”; […]
Como se pode verificar no referido caso, as justificativas apresentadas pelo Contratante para promover as alterações contratuais, em vez de iniciar um novo processo de contratação, baseavam-se em argumentos relacionados à vantajosidade econômica e à economia de tempo. No entanto, o TCU concluiu que as alterações contratuais resultaram em uma transfiguração do objeto do contrato. Do acórdão, extraímos os seguintes pontos:
As exigências de habilitação técnica do certame não se encontram presentes nos autos, mas é muito provável que os atestados exigidos para qualificação técnica dos licitantes se refiram também a serviços que não foram executados na obra, o que seria mais um fato a demonstrar a modificação do objeto licitado. […] Voto:
[…] Verificou-se que o Contrato 9/2013-Inea passou por diversas alterações quantitativas e qualitativas em relação ao escopo dos serviços que serviram de base para a Concorrência Nacional 18/2012. Entendeu a SeinfraUrbana e o Ministro Relator do processo que as alterações nas metodologias de execução das obras desvirtuaram os termos e condições pactuados inicialmente. Conforme já brevemente historiado, o Contrato 09/2013-Inea passou por significativas alterações de serviços e valores em relação aos originalmente previstos. As trocas se referem principalmente à solução de engenharia adotada para execução das estruturas de contenção utilizadas para canalização do mencionado rio. O método construtivo constante do projeto básico que subsidiou a licitação previa a realização de cortinas atirantadas executadas em concreto armado moldado in loco. Posteriormente, porém, a metodologia adotada para confecção dessas cortinas foi substituída para estruturas pré-moldadas realizadas em local diverso, para então serem transportadas ao local de sua aplicação. Essa alteração na solução de engenharia – aqui brevemente apresentada, mas extensamente detalhada nos autos (peça 60, p. 12-14; e peça 162, p. 4-7) – implicou na modificação de diversos serviços originalmente contidos na planilha orçamentária contratual (peça 60). […]
A causa das alterações parece haver sido o fato de o projeto básico não estar aderente à realidade da obra no momento de sua execução. Digo dessa forma, pois as manifestações da SeinfraUrbana e do Relator a quo são no sentido de que não está cabalmente caracterizada a necessidade e a extensão das modificações levadas a cabo. Então, segundo a equipe de auditoria, não se pode afirmar que todas as alterações decorreram de falhas no projeto básico, tampouco que a manutenção do contrato seria a única solução possível.
A modificação ocorrida na obra executada – em seu projeto e em sua planilha orçamentária – é de tal monta que configura transfiguração do objeto licitado. É fato que a obra executada continuou a ser a canalização do Rio Bengalas, mas com solução de engenharia completamente diferente daquela submetida ao crivo concorrencial da licitação. A alteração de projetos básicos é assunto já bastante debatido nesta Corte, sendo inclusive objeto de súmula:
Súmula TCU nº 261: Em licitações de obras e serviços de engenharia, é necessária a elaboração de projeto básico adequado e atualizado, assim considerado aquele aprovado com todos os elementos descritos no art. 6º, inciso IX, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, constituindo prática ilegal a revisão de projeto básico ou a elaboração de projeto executivo que transfigurem o objeto originalmente contratado em outro de natureza e propósito diversos. (Grifei).
Friso que o conceito de objeto contratual não está somente atrelado à descrição do empreendimento, mas ao conjunto de serviços e aos requisitos exigidos dos licitantes para participar do certame. […] Mesmo por hipótese, considerando uma real necessidade de alteração do projeto básico licitado, tal premissa não se mostra como condição sine qua non para a manutenção do contrato firmado em detrimento da realização de nova licitação, ainda mais quando se verifica a transfiguração do objeto empreendida pelas alterações.
Como se verifica no acórdão mencionado, as principais alterações ocorreram na metodologia de execução das obras. Inicialmente, o projeto básico previa a construção de cortinas atirantadas em concreto armado moldado in loco. Posteriormente, essa metodologia foi alterada para a utilização de estruturas pré-moldadas, confeccionadas em local diverso e transportadas para o local da obra.
Na visão do TCU, essa situação levou à transfiguração do objeto licitado, pois essas mudanças no modelo de execução foram extremamente significativas. O acórdão deixa claro que, apesar de a obra continuada ser a mesma, a solução de engenharia foi completamente diferente da prevista inicialmente.
Este exemplo destaca um dos principais cuidados que tanto a Administração quanto os particulares devem observar ao aditar e modificar contratos de engenharia diante da calamidade pública no Rio Grande do Sul. É crucial verificar se as condições causadas pelo desastre natural não requerem serviços que demandem métodos substancialmente diferentes dos previstos nos contratos estabelecidos sob circunstâncias normais, ao ponto de alterar completamente o objeto contratual originário.
Em resumo, tanto a Administração quanto os particulares devem garantir que as soluções de engenharia e os métodos empregados na execução de serviços durante a calamidade pública não se desviem significativamente daqueles utilizados em condições normais. É importante notar que o Tribunal de Contas da União tem outros precedentes em julgamentos que reforçam essa orientação.
Considerando que o objeto do contrato distingue-se em natureza e dimensão, tem-se a natureza sempre intangível, tanto nas alterações quantitativas quanto nas qualitativas. Não se pode transformar a aquisição de bicicletas em compra de aviões, ou a prestação de serviços de marcenaria em serralheria. […] As alterações qualitativas, por sua vez, decorrem de modificações necessárias ou convenientes nas quantidades de obras ou serviços sem, entretanto, implicarem mudanças no objeto contratual, seja em natureza ou dimensão.[3]
Portanto, em conclusão, é indiscutível que a Medida Provisória nº 1221/24 estabeleceu, acertadamente, condições mais flexíveis para alterações contratuais. No entanto, é crucial que, para evitar o uso inadequado das possibilidades de contratação inauguradas pela MP, as modificações nos contratos sejam feitas sem que o objeto original seja transfigurado. Em situações nas quais tais mudanças sejam necessárias e devidamente justificadas, a Administração deve optar pela celebração de novos contratos que se ajustem corretamente ao novo contexto, em vez de simplesmente alterar os existentes.
[1] Art. 125. Nas alterações unilaterais a que se refere o inciso I do caput do art. 124 desta Lei, o contratado será obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, acréscimos ou supressões de até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato que se fizerem nas obras, nos serviços ou nas compras, e, no caso de reforma de edifício ou de equipamento, o limite para os acréscimos será de 50% (cinquenta por cento).
[2] TCU – RA: 15762022 011.481/2015-3, Relator: JORGE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 06/07/2022.
[3] TCU, acórdão nº Acórdão AC-2052-31/16-P.